segunda-feira, 26 de agosto de 2013
quinta-feira, 13 de dezembro de 2012
Pobreza
Pobreza rural: um fenômeno histórico relacionado à estrutura agrária do país
Por mais que as teses “produtivistas” defendam que o país já resolveu o problema da produção agropecuária sem precisar fazer qualquer reforma em sua estrutura agrária – porém sem resolver o problema da pobreza – ,a questão agrária brasileira não pode ser relegada a um segundo plano quando se definem e implementam políticas públicas com o objetivo de erradicar a pobreza. O artigo é de Lauro Mattei.
Lauro Mattei (*)
“O problema da pobreza rural está no latifúndio e não nos pobres.” Cândido Grzyboswki
O Brasil apresenta marcas históricas que remontam ao processo colonizador, o qual destinou a esse espaço geográfico, por vários séculos, apenas a função de produção e suprimento de bens primários necessários ao atendimento dos interesses da metrópole lusitana. Tal lógica colonizadora, além de formar e estabelecer uma estrutura econômica voltada ao exterior, deixou marcas sociais que ainda estão presentes nos dias atuais. Dentre essas marcas, destacam-se a pobreza, a concentração de renda e a exclusão social.
Por isso mesmo, a pobreza não é um fenômeno novo, nem no país nem no continente latino-americano. Todavia, ela mostrou ser mais consistente nas últimas décadas do século XX quando crises econômicas afetaram a maioria dos países da região latino-americana. A partir de então, percebe-se que, além das deficiências estruturais do modelo de desenvolvimento econômico regional, os problemas sociais tornaram-se obstáculos reais para conformação de sociedades mais justas e democráticas.
Do ponto de vista econômico, o dinamismo ocorrido no Brasil durante a vigência da industrialização do país (décadas de 1940 a 1970) se esgotou rapidamente, impactando negativamente os agregados macroeconômicos, especialmente o nível de renda per capita, que passou a apresentar uma trajetória de queda, e bem como o próprio mercado de trabalho, cujas taxas de desemprego e de informalidade se expandiram fortemente durante as duas últimas décadas do século XX. Esses fatos, somados ao histórico processo de concentração da renda, agravaram ainda mais as já precárias condições de vida da população em todas as regiões do país.
Do ponto de vista social, nas últimas décadas do século XX ocorreu um forte crescimento dos índices de pobreza e de miséria em todo o país. Aliados à natureza estrutural da exclusão social, têm-se, ainda, os efeitos perversos dos programas de estabilização econômica, os quais agravaram as condições do mercado de trabalho, levando ao aumento das taxas de desemprego, à expansão da informalidade e à redução dos salários básicos, bem como estimularam a continuidade dos deslocamentos populacionais, provocando o inchaço das grandes metrópoles urbanas, que passaram a concentrar a maior parte da população do país. Com isso, a partir da década de 1990, o número absoluto de pobres vivendo nas cidades – e especialmente nas áreas metropolitanas – superou pela primeira vez o número de pessoas pobres que vivem nas áreas rurais.
Mas, em termos relativos, a pobreza rural ainda é extremamente expressiva no país. Os dados da PNAD (IBGE, 2009) revelaram que 8.4 milhões de pessoas que faziam parte da população rural total (30.7 milhões de pessoas) eram classificadas como pobres (renda per capita mensal de até ½ salário mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 207,50); e 8.1 milhões de pessoas eram classificadas como extremamente pobres (renda per capita mensal de até ¼ salário mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 103,75). Isso significa que no ano de 2009 aproximadamente 54% da população rural total era enquadrada como pobre. A distribuição espacial da pobreza rural revela que 53% do total de pessoas classificadas como pobres viviam no Nordeste do país, região que respondia também por 70% do total de pessoas extremamente pobres.
Os determinantes histórico-estruturais de geração da pobreza rural
As concepções mais abrangentes sobre o fenômeno da pobreza sugerem que ele não deve se restringir apenas à privação da renda, mas também à privação de outros bens materiais e de acesso aos serviços sociais essenciais, especialmente nas áreas de saúde, educação, alimentação, nutrição, habitação e saneamento básico. Em função disso, é recomendável que esse fenômeno seja discutido para além das variáveis puramente monetárias, mesmo sabendo-se das dificuldades envolvidas na construção de indicadores não monetários. No Brasil, por não existir este tipo de indicador, vêm sendo estabelecidas linhas de pobreza a partir de um único indicador monetário: a renda per capita familiar mensal. Há, todavia, um conjunto de outros fatores relacionados às privações que também podem explicar as causas estruturais da pobreza, conforme veremos mais adiante.
Por isso, falar da pobreza rural e de sua relação com a questão agrária requer situar o debate numa perspectiva histórica, o que pressupõe entender a conformação histórica e social do país e suas particularidades, especialmente nas áreas rurais. Desta forma, é possível afirmar que a pobreza rural não pode ser concebida como um fenômeno natural, pois se trata de um processo sócio-histórico construído pelo homem. Nesta perspectiva analítica adotada, a pobreza tem seus determinantes centrais de ordem estrutural.
Historicamente, nota-se, desde os primórdios da colonização, a natureza exploratória e predatória dos recursos disponíveis no território. Se no passado colonial o caráter dessa exploração se encontrava assentado na grande propriedade privada da terra e no trabalho escravo, hoje ele permanece amparado na grande propriedade privada das terras e no trabalho livre, que é seu substrato de acumulação e de valorização. Este movimento condicionou e ainda condiciona grande parte da vida material do país. Os traços gerais dessa materialidade econômica se circunscrevem no tempo presente à exploração econômica agrícola em grandes propriedades, na monocultura e nas commodities que dominam o cenário produtivo agroindustrial do país.
Caio Prado Júnior resumiu este processo com a seguinte expressão: “somos hoje o que nós éramos ontem”. Na verdade, aqui ele discutia a formação histórica da economia rural brasileira, a qual se assentou em três pressupostos básicos: monocultura em grandes propriedades; relações de trabalho escravocrata; e produção voltada para o exterior. E é a partir desses três elementos que podemos encontrar grande parte dos determinantes da pobreza rural, inclusive nos dias atuais.
Por exemplo, uma pesquisa realizada pelo IICA no ano de 2011 sobre “a nova cara da pobreza rural” trouxe diversas evidências na direção da abordagem aqui adotada. Assim, estudos da região Centro-Oeste mostraram que naquele local a pobreza não é apenas uma questão de renda, uma vez que ela tem sua maior expressão exatamente nas áreas de pecuária extensiva, que são espaços geográficos dominados pelos latifúndios e onde se observam elevados índices de concentração da terra. Da mesma forma, estudos da região amazônica mostraram que os determinantes da pobreza naquela região dizem respeito à falta de dotação de recursos e às relações de trabalho. No que diz respeito à dotação de recursos, o principal deles é a falta de terra, ao passo que no tocante às relações de trabalho, verificou-se que ainda permanecem formas de trabalho escravo.
Já em algumas partes da região Nordeste observou-se um processo em curso de concentração das terras em três atividades: fruticultura, cana-de-açúcar e soja, todas elas voltadas à exportação. Neste caso, notou-se uma “precarização” da pobreza rural, uma vez que os antigos proprietários autônomos agora estão sendo reduzidos à condição de ex-proprietários e submetidos a relações de trabalho precárias, especialmente em termos da renda recebida. Nestes locais, observou-se que há um processo de modernização em curso. Todavia, o mesmo está sendo comandado cada vez mais por uma minoria de empresas e grandes produtores que possuem capital para dar sustentação a esta lógica produtiva. É exatamente essa modernização que está fortalecendo a raiz “fundante” de todo processo de exclusão social e de geração de pobreza, porque ela não altera as questões histórico-estruturais, como a concentração da terra, as relações seculares de dominação e de expropriação do trabalho pelo capital.
Vimos anteriormente que a grande maioria das famílias residentes em áreas rurais e classificadas como extremamente pobres no Brasil se concentra na região Nordeste, com destaque para a parte do Semiárido. Nestes locais, destacam-se três fatores como determinantes da pobreza: a privação do acesso à água; a privação do acesso à terra; e a ocorrência sistemática das secas, fenômeno que acaba impondo diversas outras restrições, especialmente em termos de acesso a trabalho. Decorrem daí distintos movimentos migratórios temporários para outras regiões do país, especialmente para a colheita da cana e do café no Centro-Sul. Este processo submete uma parcela expressiva dessa população a condições de trabalho degradantes. Mesmo que temporariamente esses migrantes consigam participar do mercado de trabalho, as relações de trabalho e os rendimentos obtidos são extremamente precários, conforme está amplamente documentado pela literatura especializada. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, basta citar que até recentemente uma das principais reivindicações das organizações sindicais rurais era a assinatura da carteira de trabalho, o que garantiria a esses trabalhadores o acesso a alguns benefícios sociais.
Em outro extremo do país, na região Sul, o fenômeno da pobreza rural tem maior expressão também nas microrregiões onde predominam os latifúndios, destacando-se os campos de Guarapuava (PR), as regiões das Missões e da Campanha (RS) e o Planalto Serrano, em Santa Catarina. Em todos esses locais, verifica-se um fenômeno correlacionado: as microrregiões com maior concentração de terras são exatamente aquelas que apresentam os maiores índices de pobreza rural.
Todos esses exemplos são fortes indicativos de que não podemos continuar tratando o problema da pobreza rural como um mero indicador monetário, abstraído a partir da renda per capita familiar. Aqui claramente a pobreza assume a característica de um processo histórico-estrutural marcado pelas contradições sociais ainda presentes na sociedade rural brasileira, ao mesmo tempo que se revela como um fenômeno multidimensional, que poderá ser mais bem compreendido quando se utiliza a abordagem das privações.
Além disso, no caso brasileiro, a pobreza rural também está fortemente associada ao rápido processo de industrialização e de urbanização do país ocorrido a partir da segunda metade do século XX, o qual revelou uma grande contradição: por um lado, verifica-se que ocorreu uma forte expansão da produção física de mercadorias em todas as atividades econômicas, mas, por outro, foram estabelecidos mecanismos que restringiram o acesso a esse conjunto de bens produzidos, o que proporcionou um alto grau de exclusão social, cujo resultado mais visível é a existência até os dias de hoje de elevados índices de pobreza.
De uma maneira geral, pode-se dizer que esse modelo de desenvolvimento institucionalizou a pobreza rural pelos seguintes mecanismos: através da concentração fundiária, que expropriou parte dos camponeses das áreas rurais; através do uso intensivo de tecnologias modernas, que desempregou muita gente; através das relações precárias de trabalho, que degradaram e ainda degradam a vida dos trabalhadores rurais; e através do incentivo à urbanização acelerada, que esvaziou parte do espaço rural do país.
É exatamente nesta direção que a questão agrária deve retornar para o centro da agenda de discussões das políticas públicas de erradicação da pobreza rural. Por mais que as teses “produtivistas” defendam que o país já resolveu o problema da produção agropecuária sem precisar fazer qualquer reforma em sua estrutura agrária – porém sem resolver o problema da pobreza – trata-se de afirmar, à luz dos conhecimentos da história, da economia política e da sociologia política, que a questão agrária brasileira não pode ser relegada a um segundo plano quando se definem e implementam políticas públicas com o objetivo de erradicar a pobreza, seja ela extrema ou qualquer outra expressão que se queira utilizar.
Como a propriedade da terra é um ativo de alto valor econômico que se valoriza constantemente, entendemos que a busca de soluções para a questão da pobreza rural brasileira não pode ser dissociada dos marcos da estrutura agrária secular, que é um dos elementos determinantes da própria pobreza a ser erradicada. Do contrário, teríamos de aceitar as teses conservadoras que estão ganhando espaço nos últimos anos, as quais afirmam que essa massa da população excluída – e que no âmbito governamental está sendo denominada de “pobreza extrema” – não deveria ser contemplada pelas distintas políticas para o meio rural do país devido ao baixo resultado produtivo apresentado. Segundo os defensores dessas ideias, para estes segmentos sociais deveriam ser destinadas apenas políticas de transferência de renda.
Diante desse contexto, resta-nos questionar: é realmente esta solução que o projeto democrático de desenvolvimento nacional deveria oferecer para mais da metade da população rural?
(*) Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Economia e de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC, e Pesquisador do OPPA-CPDA-UFRRJ. E-mail: l.mattei@ufsc.br
Por isso mesmo, a pobreza não é um fenômeno novo, nem no país nem no continente latino-americano. Todavia, ela mostrou ser mais consistente nas últimas décadas do século XX quando crises econômicas afetaram a maioria dos países da região latino-americana. A partir de então, percebe-se que, além das deficiências estruturais do modelo de desenvolvimento econômico regional, os problemas sociais tornaram-se obstáculos reais para conformação de sociedades mais justas e democráticas.
Do ponto de vista econômico, o dinamismo ocorrido no Brasil durante a vigência da industrialização do país (décadas de 1940 a 1970) se esgotou rapidamente, impactando negativamente os agregados macroeconômicos, especialmente o nível de renda per capita, que passou a apresentar uma trajetória de queda, e bem como o próprio mercado de trabalho, cujas taxas de desemprego e de informalidade se expandiram fortemente durante as duas últimas décadas do século XX. Esses fatos, somados ao histórico processo de concentração da renda, agravaram ainda mais as já precárias condições de vida da população em todas as regiões do país.
Do ponto de vista social, nas últimas décadas do século XX ocorreu um forte crescimento dos índices de pobreza e de miséria em todo o país. Aliados à natureza estrutural da exclusão social, têm-se, ainda, os efeitos perversos dos programas de estabilização econômica, os quais agravaram as condições do mercado de trabalho, levando ao aumento das taxas de desemprego, à expansão da informalidade e à redução dos salários básicos, bem como estimularam a continuidade dos deslocamentos populacionais, provocando o inchaço das grandes metrópoles urbanas, que passaram a concentrar a maior parte da população do país. Com isso, a partir da década de 1990, o número absoluto de pobres vivendo nas cidades – e especialmente nas áreas metropolitanas – superou pela primeira vez o número de pessoas pobres que vivem nas áreas rurais.
Mas, em termos relativos, a pobreza rural ainda é extremamente expressiva no país. Os dados da PNAD (IBGE, 2009) revelaram que 8.4 milhões de pessoas que faziam parte da população rural total (30.7 milhões de pessoas) eram classificadas como pobres (renda per capita mensal de até ½ salário mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 207,50); e 8.1 milhões de pessoas eram classificadas como extremamente pobres (renda per capita mensal de até ¼ salário mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 103,75). Isso significa que no ano de 2009 aproximadamente 54% da população rural total era enquadrada como pobre. A distribuição espacial da pobreza rural revela que 53% do total de pessoas classificadas como pobres viviam no Nordeste do país, região que respondia também por 70% do total de pessoas extremamente pobres.
Os determinantes histórico-estruturais de geração da pobreza rural
As concepções mais abrangentes sobre o fenômeno da pobreza sugerem que ele não deve se restringir apenas à privação da renda, mas também à privação de outros bens materiais e de acesso aos serviços sociais essenciais, especialmente nas áreas de saúde, educação, alimentação, nutrição, habitação e saneamento básico. Em função disso, é recomendável que esse fenômeno seja discutido para além das variáveis puramente monetárias, mesmo sabendo-se das dificuldades envolvidas na construção de indicadores não monetários. No Brasil, por não existir este tipo de indicador, vêm sendo estabelecidas linhas de pobreza a partir de um único indicador monetário: a renda per capita familiar mensal. Há, todavia, um conjunto de outros fatores relacionados às privações que também podem explicar as causas estruturais da pobreza, conforme veremos mais adiante.
Por isso, falar da pobreza rural e de sua relação com a questão agrária requer situar o debate numa perspectiva histórica, o que pressupõe entender a conformação histórica e social do país e suas particularidades, especialmente nas áreas rurais. Desta forma, é possível afirmar que a pobreza rural não pode ser concebida como um fenômeno natural, pois se trata de um processo sócio-histórico construído pelo homem. Nesta perspectiva analítica adotada, a pobreza tem seus determinantes centrais de ordem estrutural.
Historicamente, nota-se, desde os primórdios da colonização, a natureza exploratória e predatória dos recursos disponíveis no território. Se no passado colonial o caráter dessa exploração se encontrava assentado na grande propriedade privada da terra e no trabalho escravo, hoje ele permanece amparado na grande propriedade privada das terras e no trabalho livre, que é seu substrato de acumulação e de valorização. Este movimento condicionou e ainda condiciona grande parte da vida material do país. Os traços gerais dessa materialidade econômica se circunscrevem no tempo presente à exploração econômica agrícola em grandes propriedades, na monocultura e nas commodities que dominam o cenário produtivo agroindustrial do país.
Caio Prado Júnior resumiu este processo com a seguinte expressão: “somos hoje o que nós éramos ontem”. Na verdade, aqui ele discutia a formação histórica da economia rural brasileira, a qual se assentou em três pressupostos básicos: monocultura em grandes propriedades; relações de trabalho escravocrata; e produção voltada para o exterior. E é a partir desses três elementos que podemos encontrar grande parte dos determinantes da pobreza rural, inclusive nos dias atuais.
Por exemplo, uma pesquisa realizada pelo IICA no ano de 2011 sobre “a nova cara da pobreza rural” trouxe diversas evidências na direção da abordagem aqui adotada. Assim, estudos da região Centro-Oeste mostraram que naquele local a pobreza não é apenas uma questão de renda, uma vez que ela tem sua maior expressão exatamente nas áreas de pecuária extensiva, que são espaços geográficos dominados pelos latifúndios e onde se observam elevados índices de concentração da terra. Da mesma forma, estudos da região amazônica mostraram que os determinantes da pobreza naquela região dizem respeito à falta de dotação de recursos e às relações de trabalho. No que diz respeito à dotação de recursos, o principal deles é a falta de terra, ao passo que no tocante às relações de trabalho, verificou-se que ainda permanecem formas de trabalho escravo.
Já em algumas partes da região Nordeste observou-se um processo em curso de concentração das terras em três atividades: fruticultura, cana-de-açúcar e soja, todas elas voltadas à exportação. Neste caso, notou-se uma “precarização” da pobreza rural, uma vez que os antigos proprietários autônomos agora estão sendo reduzidos à condição de ex-proprietários e submetidos a relações de trabalho precárias, especialmente em termos da renda recebida. Nestes locais, observou-se que há um processo de modernização em curso. Todavia, o mesmo está sendo comandado cada vez mais por uma minoria de empresas e grandes produtores que possuem capital para dar sustentação a esta lógica produtiva. É exatamente essa modernização que está fortalecendo a raiz “fundante” de todo processo de exclusão social e de geração de pobreza, porque ela não altera as questões histórico-estruturais, como a concentração da terra, as relações seculares de dominação e de expropriação do trabalho pelo capital.
Vimos anteriormente que a grande maioria das famílias residentes em áreas rurais e classificadas como extremamente pobres no Brasil se concentra na região Nordeste, com destaque para a parte do Semiárido. Nestes locais, destacam-se três fatores como determinantes da pobreza: a privação do acesso à água; a privação do acesso à terra; e a ocorrência sistemática das secas, fenômeno que acaba impondo diversas outras restrições, especialmente em termos de acesso a trabalho. Decorrem daí distintos movimentos migratórios temporários para outras regiões do país, especialmente para a colheita da cana e do café no Centro-Sul. Este processo submete uma parcela expressiva dessa população a condições de trabalho degradantes. Mesmo que temporariamente esses migrantes consigam participar do mercado de trabalho, as relações de trabalho e os rendimentos obtidos são extremamente precários, conforme está amplamente documentado pela literatura especializada. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, basta citar que até recentemente uma das principais reivindicações das organizações sindicais rurais era a assinatura da carteira de trabalho, o que garantiria a esses trabalhadores o acesso a alguns benefícios sociais.
Em outro extremo do país, na região Sul, o fenômeno da pobreza rural tem maior expressão também nas microrregiões onde predominam os latifúndios, destacando-se os campos de Guarapuava (PR), as regiões das Missões e da Campanha (RS) e o Planalto Serrano, em Santa Catarina. Em todos esses locais, verifica-se um fenômeno correlacionado: as microrregiões com maior concentração de terras são exatamente aquelas que apresentam os maiores índices de pobreza rural.
Todos esses exemplos são fortes indicativos de que não podemos continuar tratando o problema da pobreza rural como um mero indicador monetário, abstraído a partir da renda per capita familiar. Aqui claramente a pobreza assume a característica de um processo histórico-estrutural marcado pelas contradições sociais ainda presentes na sociedade rural brasileira, ao mesmo tempo que se revela como um fenômeno multidimensional, que poderá ser mais bem compreendido quando se utiliza a abordagem das privações.
Além disso, no caso brasileiro, a pobreza rural também está fortemente associada ao rápido processo de industrialização e de urbanização do país ocorrido a partir da segunda metade do século XX, o qual revelou uma grande contradição: por um lado, verifica-se que ocorreu uma forte expansão da produção física de mercadorias em todas as atividades econômicas, mas, por outro, foram estabelecidos mecanismos que restringiram o acesso a esse conjunto de bens produzidos, o que proporcionou um alto grau de exclusão social, cujo resultado mais visível é a existência até os dias de hoje de elevados índices de pobreza.
De uma maneira geral, pode-se dizer que esse modelo de desenvolvimento institucionalizou a pobreza rural pelos seguintes mecanismos: através da concentração fundiária, que expropriou parte dos camponeses das áreas rurais; através do uso intensivo de tecnologias modernas, que desempregou muita gente; através das relações precárias de trabalho, que degradaram e ainda degradam a vida dos trabalhadores rurais; e através do incentivo à urbanização acelerada, que esvaziou parte do espaço rural do país.
É exatamente nesta direção que a questão agrária deve retornar para o centro da agenda de discussões das políticas públicas de erradicação da pobreza rural. Por mais que as teses “produtivistas” defendam que o país já resolveu o problema da produção agropecuária sem precisar fazer qualquer reforma em sua estrutura agrária – porém sem resolver o problema da pobreza – trata-se de afirmar, à luz dos conhecimentos da história, da economia política e da sociologia política, que a questão agrária brasileira não pode ser relegada a um segundo plano quando se definem e implementam políticas públicas com o objetivo de erradicar a pobreza, seja ela extrema ou qualquer outra expressão que se queira utilizar.
Como a propriedade da terra é um ativo de alto valor econômico que se valoriza constantemente, entendemos que a busca de soluções para a questão da pobreza rural brasileira não pode ser dissociada dos marcos da estrutura agrária secular, que é um dos elementos determinantes da própria pobreza a ser erradicada. Do contrário, teríamos de aceitar as teses conservadoras que estão ganhando espaço nos últimos anos, as quais afirmam que essa massa da população excluída – e que no âmbito governamental está sendo denominada de “pobreza extrema” – não deveria ser contemplada pelas distintas políticas para o meio rural do país devido ao baixo resultado produtivo apresentado. Segundo os defensores dessas ideias, para estes segmentos sociais deveriam ser destinadas apenas políticas de transferência de renda.
Diante desse contexto, resta-nos questionar: é realmente esta solução que o projeto democrático de desenvolvimento nacional deveria oferecer para mais da metade da população rural?
(*) Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Economia e de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC, e Pesquisador do OPPA-CPDA-UFRRJ. E-mail: l.mattei@ufsc.br
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
Dialética Mundial
Capitalismo cooporativo e ciências sociais
por Pablo Gonzalez Casanova
México, 24 de novembro de 2012
Palavras preliminares.
Para se aproximar às ciências sociais e o porvir de qualquer país ou região é inevitável analisar o processo de globalização que mundialmente se iniciou com o golpe de Estado de Pinochet em Chile. Desde então e até hoje, globalização e neoliberalismo evoluiram a passos acelerados, em sucessivas crises que abragem o mundo inteiro.
A partir da necessidade de colocar os problemas locais ou regionais dentro de uma dialética mundial, divido esta exposição em três partes. Na primeira, farei referência às ciências hegemônicas da globalização. Na segunda, levarei em conta o atual aprofundamento da crise e a dialética das necessidades imediatas, e dos hábitos de pressão e negociação, o de conformismo. E, na terceira parte, assinalarei como conseguem se superar as contradições, as desregulações e depredações do capitalismo corporativo, coforme elas aumentam; e também vou me referir as ciências sociais e ao pensamento crítico, alternativo e revolucionário, com manifestações particularmente ricas em América Latina.
Pretendo, antes, esclarecer que reconheço os males e perigos do mundo, com a certeza de que conhecê-los ajuda-nos a lutar para vencê-los. Digo isso porque vou falar sobre uma situação que tem piorado e sobre como tem piorado.
Dentre o novo da globalização cabe atender observações que quando juntas têm um sentido do qual carecem quando são apresentadas por separado. Procurarei dar destaque às tendências nas quais se inscrevem as notícias isoladas dos jornais e outras mídias.
Primeira Parte.
1. Quero esclarecer que as ciências hegemônicas não são apenas ideologia. São também tecnologias e tecnociências para a dominação e a acumulação.
2. Como ciências e tecnociências, seu desenvolvimento não se restringe, mas corresponde ao desnevolvimento das ciências da comunicação e da organização destinadas a atingir os objetivos do capitalismo corporativo y de seus sistemas de organização para a maximização dos lucros e a minimização das perdas.
3. As ciências e tecnociências palicam-se à organização do sistema de sistemas corporativos, e também à organização de uma corporação como sistema de dominação e acumulação.
4. As tecnociências da comunicação e da informação constituem conhecimentos diretamente vinculados à organização dos sistemas do capitalismo corporativo. O vínculo entre comunicação, informação e organização coloca problemas das redes de informação e suas unidades hierárquicas e cooperativas, centralizadas e autônomas, formais e informais, legais e ilegais, abertas e encobertas.
5. Coloca ao mesmo tempo os problemas das unidades hierárquicas e das unidades coordinadas que de cima a baixo ou de baixo a cima dialogam e precisam as ações mais adequadas nos diferentes espaços ou tempos.
6. Em todos os casos, a organização das corporações procura estimular a retroalimentação para aumentar a eficiência e a eficácia, a competitividade e as possibilidades de domínio e acumulação. Ninguém declara que “em geral” as organizações devem ser hierárquicas ou cooperativas: estuda-se quais convêm em cada caso ou campo de ação para atingir os objetivos.
7. Acrescentam-se aos problemas anteriores aqueles que correspondem ao sentido da informação. Nesse terreno, aparecem as racionalizações e as ideologias e valores que deformam ou escamoteiam os verdadeiros objetivos que são procurados.
8. Muitos enganos e auto-enganos ocultam-se aos próprios atores e pesquisadores, e nem se fala o que se ocupta aos concorrentes ou às vítimas atuais e potenciais, a quem se enfraquece e se faz perder eficácia e eficiência mediante políticas de desinformação, de desorganização, de perda de senso da realidade, de conformismo, desentendimento, desídia mental e material, virtual e real.
9. As guerras formais e informais das políticas de desinformação, desconhecimento e desestruturação complementam-se com as medidas de eliminação e destruição física e moral de concorrentes e opositores.
10. Eliminação e destruição combinam-se com convites e atenções que procuram a cooptação, colusão e corrupção de indivíduos e grupos aos que se atrai e se afasta dos seus. A política de eliminação combina-se com a política dos desertores e traidores, ou dos agradecidos e integrados.
Falaremos mais na frente das limitações e contradições destas medidas e da rejeição das mesmas.
11. Outro campo dos conhecimentos hegemônicos aplicados pelo capital corporativo é o das combinações e reestrutorações, não apenas em redes de empresas associadas e subordinadas, mas também em redes de complexos empresariais-militares-políticos e mediáticos. As redes das corporações incluem coletivos dos que mandam nas organizações financeiras, nas megaempresas de produção, comunicação e serviços, no exército e na informação.
12. Os complexos de poder são unidades integradas que constituem “o poder atrás do Estado”. Aos complexos de poder das corporações corresponde assumir a soberania ou decisão na última instância; mas não o fazem sem uma grande quantidade de mediações nas que as decisões são discutidas e são tomadas por sócios, membros, cidadãos em campos atribuidos às soluções alternativas. Combinam-se assim uma grande autoridade e sujeição com campos de negociação que variam segundo a correlação de forças.
13. Em grande medida informais, os complexos de poder servem-se, de maneira também informal, de intermediários ou grupos de cooptação, corrupção, pressão e represão que, entre outros, constituem “lobbies” cujos membros operam nos círculos políticos, ou formam e contratam agentes que agem de maneira aberta ou encoverta, aos quais são encarregadas ações legais e ilegais, entre as que se esconde o crime organizado e terceirizado.
14. Os sistemas autorregulados e orientados para finalidades se aplicam junto com sistemas tecnológicos que são, além de autorregulados, adaptáveis, criadores e procriadores. As tecnociências da “inteligência” impulsionam crescimento e aperfeiçoamento da robótica, e dão origem tanto à biorrobótica como à construção de redes e sistemas de redes de informação e organização.
15. Robótica e biorrobótica, assim como ciências da informação e da organização, aumentam eficiencia e eficácia das corporações e complexos nos [cálculos dos] custos da acumulação e da dominação, na massa salarial, nas baixas das guerras, na “conquista” de mercados… Também aumentam o desemprego dos artesãos, trabalhadores autônomos, assalariados de pequenas e médias empresas.
16. E mais, enfraquecem as demandas dos trabalhadores organizados que desde seus lugares de trabalho se enfrentam a um capital em redes com alta mobilidade mundial, capaz de emigrar de um dia para outro, em direção a países com trabalhadores desregulados, que são como “estábulos de mão de obra barata”.
17. Os efeitos buscados para o abatimento de salários e a perda da força dos trabalhadores organizados não se limitam a operar na geografia das desigualdades existente. Com o neoliberalismo e a globalização impõem políticas de construção de “estábulos de mão de obra barata” nos próprios países centrais, nem se fala nos da periferia mundial.
18. As tecnociências aumentam exponencialmente a proporção de vítimas e danos do inimigo, se compararmos com as vítimas e os danos próprios. Os transgênicos aumentam de maneira também exponencial a capacidade de produção das agroindústrias e o deslocamento ou eliminação de camponeses, cujos territórios passam a depender das sementes transgênicas ou a perder suas propriedades em benefício da agroindústria ou das empresas extrativistas. À expulsão pelos transgênicos da qual são objeto, acrescentam-se mais outras medidas, como a falta de créditos, e numerosas formas de asédio e acoso de pistoleiros, paramilitares e narcotraficantes. As notícias que se publicam não dão conta das tendências às quais respondem.
19. Outros recursos tecnocientíficos notáveis são, por um lado, os que têm antecedentes na história das “mentiras de guerra” e, por outro lado, os que operam na economia monetária. Trata-se da “realidade virtual”, com afinidade incrível com o termo-magnetismo. O qual contribui com uma espécie de milagre científico: o de fazer acreditar que se vive num mundo no qual não se vive. Permite organizar lutas de distração que anulam totalmente a capacidade de ver e entender as lutas reais na que os beneficiários são as corporações e complexos e os integrantes de suas redes de apoio.
20. É necessário esclarecer que a diferença entre a realidade virtual e a realidade é distinta da diferença entre o mundo formal e o mundo real das instituições e o direito. Distinguem-se com relação às verdadeiras práticas que pouco e nada têm a ver com as formas institucionais e jurídicas.
Os modelos tecnocientíficos da realidade virtual correspondem ao que de verdade parece real e não é real, ao que potencialmente é real e na hora da verdade resulta não ser real… O fenômeno se dá na dívida externa, na dívida pública, e na dívida hipotecária, todas impagáveis, mas que permitem criar auges econômicos fictícios, possuir propriedades que de antemão vão se perder e permitem às corporações e complexos fazer negócios e política. O fenômeno também se repite nas guerras virtuais contra o terrorismo e o narcotráfico que distraem das guerras reais da globalização e recolonização. Em suas versões político0militares corresponde a modelos de corrupção e cooptação de indivíduos, grupos e colectividades de vítimas famintas. Nas guerras e politicas virtuais pela “liberdade” os cenários virtuais têm sido amplamente aplicados. Aplicaram-se também nos processos de globalização, primeiro com as técnicas contrainsurgentes, dpois com as técnicas de colonização e recolonização urbano-rural.
21. A ciência mais avançada na opinião da maioria dos gerentes da globalização é a chamada “ciência da tomada de decisões”, uma das ramas na que recibem generosos subsídios e estímulos dos grupos e centros de pesquisa. Sua área privilegiada é a que se ocupa de refinar a tomada de decisões para a maximização de benefícios e para a diminuição dos riscos, tanto no campo econômico, como no campo político-militar. Combinaa com a velha política de “pão e porrete”, ou com a psicologia de Skinner para a domesticação de animais e humanos, ou com os preceitos de Teodoro Roosevelt para a dominação dos povos com “bananas e garrotes”, mais do que um rigor científico, indica quão forte se sente o mundo das corporações e dos complexos militares-empresariais para impor sua política e dominação e acumulação.
22. Por outra parte, um tipo de conhecimentos científicos que se pensaria que está longe de ser aplicado pelo capital corporativo é o dos sistemas cosmológicos que Prigoginne chamou “disipativos”. Trata-se de sistemas que para continuar existindo insumem energia e matéria de seus contextos e jogam neles os detritos e resíduos. No reino das analogias, característico das novas ciências, o fenômeno é um símil perfeito das diferentes formas de colonialismo e sobre tudo do neocolonialismo transnacional. É verdade, os símis acordam a imaginação científica dos modelos e cenários da geopolítica.
23. Com respeito aos sistemas da matéria e da vida, muitos mostram obedecer a processos entrópicos e neguemtrópicos, ou a “lutas” antisistémias e de defesa do sistema. É o caso dos sistemas em fase de transição ao caos ou em fase de emergência do caos, de desestruturação por bifurcações sucessivas que não podem ser contidas, ou de estruturação crescente com “fractais” ou formações, que são semelhantes a escalas cada vez maiores; ou o caso das redes e “dendritas” ou “condutores” de neuronios que se tornam órgãos mais e mais complexos e eficientes. É o caso também do corpo humano com os anticorpos positivos que o defendem junto com o baso, e os anticorpos negativos que atacam os defensores, os confundem e chegam a destruí-los, destruindo assim o organismo. Todo esse tipo de sistemas, aparentemente desligados da prática, têm aplicação analógica para destruir o inimigo ou a vítima, e como nos casos anteriores podem reaparecer numa epistemologia funcional ao sistema, grata ao sistema, e que por princípio oculta de si mesma sua própria historicidade como sistema que necessariamente tem um principio e um fim. A “negação” cognitiva –descoberta por Freud nas suas pesquisas psicoanalíticas- manifesta-se ainda com mais clareza em relação às forças dominantes de sistemas que mostram características terminais, como é o caso do capitalismo, segundo tem comprovado, entre outros, Immanuel Wallernstein, um dos mais connotados pesquisadores das ciências sociais.
Segunda-parte
24. Se repararmos no conjunto destas novas técnicas de organização e as considerarmos como sistemas de unidades ou “coletivos” que se enlaçam e interatuam para atingir objetivos, reconhecemos um fato no qual temos prestado menos atenção da que merece. Neoliberalismo e globalização têm gerado uma colosal reestruturação do capitalismo, da dominação e da acumulação, que dizem respeito às lutas dos trabalhadores e dos povos.
Já em ocasiões anteriores, o capitalismo tinha se reestruturado para aumentar seu poder e lucro. Mas as restruturações atuais são diferentes das anteriores. As anteriores serviram, desde o século XIX, para aumentar as divisões da classe operária no processo de organização e luta. As políticas emergentes nos inícios do capitalismo industrial passaram da criação da chamada “aristocracia operária” –que se afastou do “proletariado pobre”-, à formação dos “setores médios”, e de amplas camadas de “trabalhadores de colarinho branco” frente aos de “colarinho azul”, e frente aos que nem camisa tinham, frente aos “descamisados”, como são chamados na Argentina.
As políticas de estratificação e mobilidade social foram aplicadas em larga escala. Se desde finais do século XIX a mudança de escala ou estratificação social aumentou em alguns países de Europa Ocidental, aumentou ainda mais, e num maior número de países, depois da Segunda Guerra Mundial. Nos países centrais o “Welfare State” (o “Estado Social” [“Estado de Bem-estar”]) e o “New Deal” (o “Novo pacto”), e nos países periféricos o “Nacionalismo revolucionário”, a “descolonização” formal e o “desenvolvimentismo”. Às velhas divisões dos trabalhadores acrescentaram-se novas divisões por estratos e setores com uma maioria que ficou desregulada e continuou sem direitos sociais e nem cidadãos efetivos (e a falsa esperança de alcançá-los com “o desenvolvimento”), e com uma minoria relativa que contava com organizações e políticas públicas , e com a regulação jurídica dos direitos de se unir, de pressionar e negociar. O resultado buscado e não buscado, esperado e inesperado dessa política foi a proliferação simultânea dos “condenados da terra”, dos trabalhadores e povos “marginalizados” e “excluídos”, dos jornaleiros desterrados e “indocumentados”. Desde então até hoje, todos esses “marginalizados do desenvolvimento”, excluidos e superexplorados constituem a imensa maioria dos trabalhadores do mundo.
25. Com a globalização e o neoliberalismo de finais do século XX e início do século XXI veio um novo controle dos dos trabalhadores. O novo controle incluiu os trabalhadores dos países centrais e todos os trabalhadores organizados para privá-los dos seus direitos e políticas públicas e “desregulá-los”. Ao mesmo tempo, o capital corporativo entrou no processo para forjar uma nova “organização de sistemas autorregulados” ao seu serviço, que mudaram ainda mais, tanto a luta de classes como a luta dos povos por sua Independência.
Ao crescimento das empresas transnacionais acrescentou-se a consolidação das forças de mando e de impulso à integração dos verdadeiros “complexos empresariais-militare-mediáticos e políticos”. Com eles, o capital corporativo aperfeiçoou suas políticas de cooptação e repressão, e também as de escamoteio, por meio das chamadas “encobertas”, entre as quais destaca-se a “terceirização” de trabalhadores através de fábricas de trabalhadores superexplorados. Essas fábricas são conhecidas em inglês como “sweat shops” ou “fábricas sudadeiro”. O que seus patrões fazem é sob sua própria responsabilidade. De suas ações desumanas e inclusive criminosas, não são responsáveis, nem em apariência e nem legalmente, as megaempresas que, ao comprar seus produtos a preços muito mais baixos do que teriam que pagar aos seus assalariados, ficam com o excedente que consiguem os exploradores.
26. As novas políticas permitiram ao capital corporativo tirar as principais faculdades soberanas dos Estados, até dispor de um novo tipo de Estado privatizado cujos chefes de governo façam da “competitividade”, da “eficácia”, da “eficiência” e da “gobernanza” sua principal tarefa: atrair os capitais com excenções de tributos, com subsídios, com aplicação do orçamento para fortalecer suas infraestruturas, com desregulação dos trabalhadores, com políticas de “deixar fazer, deixar passar” ou de “lavado de dinheiro” que contribuuem sem o menor obstáculo para a compra-venda e o tráfico de armas e drogas. Seus beneficiários contribuem por sua vez com a recolonização de regiões e países por meio da terceirizada cooperação do “crime organizado”.
Também, “sob seu próprio risco”, o “crime organizado” coopera com as corporações “extrativistas” e de manufatura para suministrar mão de obra barata e trabalhadores completamente desrregulados, muitos deles em condição de novos escravos ou semi-escravos de fato, com homens, mulheres e crianças que os governos dão por “desaparecidos”. Grupos “paramilitares” e “crime organizado” praticam a política de imigração dos países industrializados que já não necessitam mais trabalhadores informais dos que têm. Adiantam-se a suas polícias de migração e aos seus guardas de fronteira e lhes poupam o trabalho de rejeitá-los ou eliminá-los, reduzindo-os por meio de polítics de genocídio e escravização. As vítimas são em parte contabilizadas e classificadas pelas próprias instituições das Nações Unidas.
27. A nova categoria dos governos privatizados faz dos seus presidentes um novo tipo de gerentes que mostram ser bons governantes por sua capacidade de atrair capitais corporativos e de aplicar as políticas de “decrecimento”, “desinformação”, “desconhecimento” e “deseducação” com que o capital corporativo dominante consegue eliminar competidores nos países endividados e impide que surjam novos competidores com alta capacidade tecnológica, ou classes médias com jovens insubmissos e bem preparados. A política da ignorância universal é aplicada com uma variante principal: nos países centrais e mais avançados de Europa, Estados Unidos e Canadá com uma crescente privatização das escolas e universiades, complementada com o endividamento por toda a vida dos estudantes pobres, que queiram estudar, e com a transmissão de uma mentalidade e orientação tecnocrática e empresarial que se aplicam na docência e na pesquisa. Com respeito aos países em desenvolvimento sujeitos ao Banco Central Europeu ou ao Banco Mundal dominado pelos Estados Unidos, a política da ignorância vai desde o fechamento leegal de escolas e universidades até sua autodestruição e ocupação pelas forças públicas. A política da ignorância inclui todos os níveis de educação e pesquisa científica, tecnológica e humanista, entre variações focalizadas.
28. Os presidentes-gerentes e demais governantes mental e materialmente privatizados abandonam, com o apoio dos “acionistas” e da burocracia dos “complexos militares-políticos-empresariais e mediáticos” os antigos projetos de Civilização, Progresso, Desenvolvimento. É claro que abandonam também os antigos projetos da democracia do povo com o povo e para o povo, e de justiça e liberdade que num tempo passado proclamaram alguns dos mais importantes “founding fathers” [“pais fundadores”], como Lincoln.
29. O “emagrecimento” do Estado para bem da “Sociedade Civil” e os direitos humanos, o processo globalizador soma, de fato, o triunfo que propuso o neoconservador Daniel Bell sobre “as obsoletas lutas ideológias” que tem sido substituidas por curiosas lutas de partidos com diferentes legendas e com posições muito parecidas nos quais se apoiam as contrarreformas neoliberais, ou guardam silêncio sobre elas deixando que povos e trabalhadores paguem os custos da crise que enriquece sem recato as arcas dos poderosos.
30. O discurso público perde seu significado prático. O direito, a moral, o humanismo, a democracia, o socialismo, a pátria, os “direitos humanos” contêm significados e sobreentendidos retóricos, só emocionais para os poderosos. A crítica e a pressão perdem significado: os aludidos “fazem de conta que não ouvem”, e não ouvem. Só resta o que Cardoza Aragão chamava de “direito à reclamação”. Na Sociedade e no Estado predomina o individualismo, com “amáveis mendicantes”, e às vezes com agressivos “grupos de pressão e interesse” e com “tribos políticas”cujos membros se mostram desejosos de ser designados para cargos eletivos que são obtidos sob um novo tipo de golpes de Estado institucionais, e são fonte de múltiplos negócios para quem financia os milhonários gastos das “eleições populares”. Nos golpes de Estado institucioanis, o exército limita-se a fortalecer os atos ilegais e ilegítimos, uma vez que são declarados perfeitamente legais e legítimos pelas autoridades nacionais e pelos chefes de Estado do projeto globalizador. A globalização abrange assim a “democracia ocidental” e fortalece com a legitimidade diplomática e “a comunidade internacional” os novos golpes à “liberdade de sufrágio”.
Terceira Parte.
31. En tais condições, acentua-se uma crise que inclui a economia, a cultura, a política, a segurança, a sociedade, a ecologia, a paz. Incrementam-se as cooptações, as corrupções e as repressoes não apenas individuais, mas coletivas. As lutas dos partidos políticos perdem sentido com o alinhamento de todos à mesma política lobalizadora e neoliberal. A lógica do “menos ruim” ou do “menosruinismo”, que frequentemente não carece de fundamento, continua sendo praticada em condições cada vez piores.
32. Ao mesmo tempo, as forças neoliberais e globalizadoras ampliam a margem do que não é negociável. Como bons governantes da globalização mostram o que lhes é exigido: mostram que “sabem tomar decisões perante os perigos”, que é “a mais recente arte de governar”. Enfrentam riscos ao sustentar e ampliar firmemente o não negociável, uma vez que “o não negociável” corresponde a uma nova expressão da ditadura do capital.
33. Nesta situação, os conhecimentos científicos não estimulados ou tácita e abertamente proibidos passam a ser “conhecimentos perseguidos”, como faz pouco tempo assinalou, em Estados Unidos mesmo, o presidente da “Academy for the Advancement of Science”.
34. Também aperfeiçoam-se os falsos apoios aos movimentos sociais rebeldes com “marines” ou soldados locais que os defendem em nome da liberdade. E, ao mesmo tempo em que se grita “liberdade”, amplia-se a legalização de políticas de privatização e depredação.
35. Coloca-se na pauta daquilo que é legal conveniente aquilo que antes se criminalizaa sem direito positivo que o respaldasse e agora realiza-se “com todo direito”. Assim, aumentam os espaços legais da “mão de obra” desrregulada, e a escravização do trabalho de uma mão de obra universalmente desrregulada.
36. Aplicam-se modelos de corrupção de eleitores e de rebeldes, de bases de apoio a governos e estados em resistência. Montam-se cenários da realidade virtual em países inteiros com homens de carne e osso, com armas de alto calibre e com vítimas incontáveis de feridos, mortos, desaparecidos, despojados e escravizados.
37. Políticas contra os trabalhadores e os povos que antes só se praticavam no “Sul” aplicam-se no “Norte”, como na Espanha, na Grécia, na Itália.
38. Estimulam-se fobias raciais e religiosas, como as que hoje se aplicam aos musulmanos como antes se aplicaram contra os judeus.
39. Aumentam abertamente os processos de recolonização e de intervenção aérea, terrestre e marítima, como em Líbia. Ou as ocupações que com a desculpa de ajuda humanitária são realizadas, como em Haïti.
40. Aumentam as guerras bem armadas entre o Norte e o Sul de países como em Sudão.
41. Continuam as guerras de asédio e cerco de Rússia e China, e as que destroem países inteiros, como Palestina, Irak e Síria.
42. Aumenta a exploração de minério a céu aberto.
43. Continuam os fatores antropogênicos que determinam o esquentamento global.
44. Extendem-se e aprofundam-se as políticas de decrescimento.
45. Aumenta o desemprego tecnológico e o desemprego por eliminação do setor público de saúde, educação, moradia, produção e distribuição de bens e serviços de primeira necessidade para a população de baixos ingressos.
46. As políticas de “austeridade” e de “ajuste orçamentário” combinam-se com as de subsídios bilhonários para salvar as corporações e os bancos de curiosas crises em que obtêm imensos lucros.
47. Emerge novamente o mundo com um franco confronto entre bloques de Oriente e Ocidente.
48. Os processos de destruição-recuperação são substituidos pelos de destruição de países e apropriação de energéticos e de outros recursos extractivos para os que se constroi a infraestrutura necessária.
49. A extrema direita ocupa um espaço cada vez mais amplo com algumas combinações nas quais, a partir da direita, procura-se “cuidar” a classe média, como nos EUA, onde o democrata Obama se desloca para a direita com algumas concessões sociais e o Republicano Romney reelabora essa rara espécie de anglo-fascismo com democracia e sem soberania do povo, na esperança de ganhar na próxima oportunidade.
Quarta Parte.
50. No meio desta grande crise surgem em Nuestra América e na própria América do Norte forças sem precedente. Apresentam-se novas possibilidades, resistências, valores e formas de luta com ênfase na construção de forças.
51. Tanto nas correntes emancipadoras, como no pensamento crítico, alternativo e revolucionário, radical e resistente, com ênfase especial para a construção dos próprios movimentos com a prática dos valores pelos que lutam. À clássica alternativa de “Reforma ou Revolução” acrescenta-se a ideia-força de criar “esse outro mundo possível” nas próprias organizações que lutam por ele. O fenômeno manifesta-se a partir do “26 de Juio” na precursora Ilha de Cuba, passando pelos zapatistas do Sudeste Mexicano, que por mais de vinte anos constroem em seu território o ideal pelo qual lutam, até os povos andinos e os “Ocupa” de Wall Street. Em todos os movimentos por “outro mundo possível” procura-se praticar “a felicidade de uns que não implique no sacrifício de outros”, como definem os novos incas a utopia possível e necessária de nosso tempo. Em todos prevalecem os valores de uma democracia como poder do povo, e como respeito à cultura, à língua, à raça, ao sexo, à idade dos demais.
52. Chegando neste ponto, pareceria fundamental analisar a dialética dos interesses imediatos que se encontram com os hábitos de trabalhar e lutar e com um sentido comum que não se abandona facilmente… Apenas vou apontar o problema. É evidente que a dialética dos interesses imediatos e dos hábitos de pensar e atuar vive crescentes contradições conforme o processo globalizador avança como crise e como guerra, no qual a crise e a guerre adquirem características extremamente violentas e dramáticas na dominação e na acumulação, no poder e no emprego, na insegurança, na educação e na cultura, na política e na sociedade, e no esgotamento dos recursos vitais. Vivir a crise na crise –como na Grécia ou na Espanha- gera mudanças inusitadas de dor e de fúria. Uns tomam a decisão de tirar a própria vida, e outros a de lutar e até dar a vida para vencer o sistema opressor e depredador no qual “a vida não é vida”, e no qual com a decisão de lutar para ganhar luta-se pela firmeza, pela lucidez, pela sagacidade, pela malícia e pela audácia perante o inimigo, e, também, pela consciência do que acontece, das suas causas e remédios; pela informação e a organização e por fortalecer, recuperar e extender o sentido da luta. Crise, decisão e criação histórica parecem acontecer com mais frequencia e fortaleza nas juventudes “sem escola, sem eprego e sem futuro” que se unem mais e mais entre si e com “os de baixo e à esquerda”, como os trabalhadores desrregulados e com os exxcluidos, com os cidadãos traidos, com os povos recolonizados e, agora também, com os desrregulados e colonizados dos próprios países centrais.
Uma crise como essa –que além do mais está rigorosamente documentada- rompe a dialética dos interesses imediatos e elimina o “senso comum” alienado de quem queria seguir lutando como antes, só para recuperar o que antes obtinham como indivíduos, ou como “grupos” ou “partidos” ou “sindicatos de empresa” ou pequenas congregações. Entre tropeços e iluminações redescobrem a velha e nova luta pela emancipação perante opressores e depredadores, hoje reagrupados em redes de acionistas, gerentes e conselhos de corporações, organizações financeiras e complexos empresariais-militares-políticos e mediáticos com suas redes abertas e encobertas de associados, subordinados, terceirizados e mafiosos, com uns como grandes, respetáveis e cultos senhores, e outros como agentes encobertos, criminosos organizados supostamente perseguidos e paramilitares supostamente camponeses, operários e estudantes pobres.
Três observações ineludíveis:
53. A imensa maioria das populações que se beneficiaram com as políticas do Estado de Bem Estar e que hoje sofrem os prejuiços crescentes do Estado privatizado e recolonizado, neoliberal, têm hábitos de lutar e direitos adquiridos que os levam os levam a se propor o impossível: vltar ao passado Estado de Bem Estar, que além do mais só beneficiou e deu direitos a umaquinta parte da população mundial, ou menos. Muitos dos que se recusam a sacrificar seus interesses imediatos e os de sua família –com razões que não são de maneira alguma desprezíveis- mostram uma grande incapacidade em reconhecer que “o que não é negociável” é pra valer e não é um jeito de dizer das forças que dominam no seu país e no mundo. Não se dão conta que “o que não é negociável” é o que dá um caráter ditatorial aos que dominam e mandam como grandes proprietários ou como soberanos.
54. Se a esperança de retorno ao Estado socialdemocrata ou ao socialismo burocrático ainda subsiste em muitos, é de se esperar que, com o aprofundamento imparável da crise, da desrregulação e do despojo, característicos da recolonização pela força inapelável das corporações e complexos, dada esse aprofundamento determinado pela sua coviça em aumento e imparáveis exigências, os prejuiços que vão gerar em milhares de milhões de vítimas promoverão esse momento histórico e dor e raiva que nas grandes crises da civilização sempre leva a romer, em forma exponencial, os hábitos de luta, e a deixar de lado a lógica dos interesses imediatos. Se isto acontecer, como prevêm as mais rigorosas pesquisas científicas, os novos movimentos sociais, surgidos na época do neoliberalismo e a globalização, e que têm como pioneiros os povos indígenas, e dentre eles, como precursor, o movimento zapatista dos povos maias… é muito provável e desejável que se articulem com os novos movimentos populares encabeçados pela juventude, que em 2011 e 2012 surgiram inclusive nos países centrais, e que enriqueçam com eles o projeto emancipador mais rico na história da humanidade: um projeto de projetos de luta que define as palavras e os conceitos pela organização.
55. O novo movimento histórico pela emancipação e pela vida está num processo criador genuino de organização da liberdade, de organização do pluralismo ideológico e religioso, de organização da justiça social e os direitos humanos de pessoas, trabalhadores, e comunidades; pela organização de direitos que incluam as raças, sexos, homosexuais, grupos de faixa etária, e pela organização de uma democracia e um socialismo que combinem a participação com a representação, e as relações horizontais com as hierárquicas, e todas para fazer que os encarregados e comissionados sejam efetivamente “servidores públicos” e “mandem obedecendo” as instruções gerais deduzidas de uma inter-comunicação permanente com a que resultem e corrijam as linhas gerais de luta, de povos soberanos, capazes de reorganizar e recriar a história que nasce.
56. O discurso que “junta a palavra com a coisa” e a forma mais idônea para lutar contra a “realidade virtual” que escamoteia o futuro realmente a esperar, e faz perder o sentido das lutas realmente existentes com antigos e novos recursos do teatro político. Os conceitos dos novos movimentos não só se definem pelas palavras e os símbolos, mas pela organização ds práticas correspondentes, e dos meios mais idôneos para alcançar o futuro que se quer. As relações desejadas articulam-se e practicam-se. Atinge-se assim esse outro objetivo de “fazer caminho ao andar”.
57. Os conceitos definem-se pela organização, a organização pelos objetivos a serem atingidos, assim como pela comunicaçãopela informação, pelas mnsagens, pelo sentido das mensagens, pelo saber e a experiência em que as mensagens se baseiam, pela precisão, clareza e profundidade com que se transmitem e entendem, pelas medidas em que se aplicam e os novos conhecimentos que resultam da ação prática ou praxis, e que permitem repetir ou reformular o processo com maiores conhecimentos, levando em conta as variações históricas e geográficas concretas às que se refere o sub-comandante Marcos nos seus ensaios epistemológicos. E nesse ponto vem a minha memória essa vivência de um caminhar no barro da Lacandona, no qual sentimos que até o teatro nos conduzia à Realidad , ou o que vivi em 1959 em Cuba, onde o discurso pedagógico conduzia à utopia que se organiza entre contradições.
58. Os novos contingentes que se inscrivirem nos amplos projetos de luta por outro mundo possível e necessário vão enfretnar numerosas contradições entre as que se destaca a que se dá nos próprios governos de resistência ao neoliberalismo e a globalização, à privatização, os que se propõem tanto a resistência como à construção de uma nova organização da sociedade e o poder, diferente do poder e a acumulação. Em qualquer desses casos surgem falsas alternativas, muitas delas dotrinárias e de sonhos passados. Mas a única que poderá assegurar o triunfo da lutapela independência e a democracia, pela justiça, pelo novo socialismo e a maravilhosa liberdade é a que organiza a soberania do povo e seu governo de tal modo que tanto seu governo respete a soberania, como os outros governos se vejam obrigados a respeitar a soberania de povos articulados com seus governos, e de governos articulados com seus povos, uns e outros capazes de impor soluções acordadas face às contradições internas. A sobrevivência de Cuba em meio à catástrofe do socialismo parlamentário e do socialismo burocrático deve-se à imensa organização, de amplo espectro, que compreende o Estado-Povo da pequena ilha bloqueada faz mais de cinquenta anos, único movimento emancipador e criador constante e triunfante.
59. Hoje, é cada vez maior o domínio das novas técnicas de comunicação, informação e organização pelos movimentos do Mundo Árabe, de Grécia e de Espanha, de EUA, dos jovens latino americanos, que de Chile a México, passando pelo Caribe, estão iniciando a luta digital e cibernética por outro mundo possível.
60. E o importante é que às inovações no conhecimento, a comunicação e a organização se junta uma convicção crescente de que a moral é uma arma fundamental de luta para a organização da cooperação, e da solidariedade necessárias para construir “outro mundo possível” e para defender sua construção.
61. Além de fortalecer as estruturas de solidariedade e a cooperação, a moral de luta unida à redefinição das estruturas para a defesa do projeto alternativo vai preencher um vazio muito descuidado pelos “moralistas”. Face ao ataque de complexos e corporações com “a repressão e a corrupção”, com “o porrete e a cenoura”, o “pau e a voz doce”, os criadores da nova história não apenas vão colocar semper a luta pela segurança, mas também a luta contra a “caridade de guerra” chamada “ação cívica” ou “humanitária” e contra as falsas empatias de quem diz lutar com os povos quando na realidade lutam contra eles. O “sou pobre mais honesto”, e o “prefiro morrer lutando a viver de joelhos” resumem-se no elogio da dignidade que cultivam os povos indígenas.
62. As ciências sociais e quem as combinam com o saber dos povos podem assumir os grandes desafios que a história coloca, e cada um o fará “segundo suas capacidades e possibilidades”. Uns poderão se adentrar na política pedagógica e diagonal, e de vanguardas que constroem vanguardas, que por sua vez constroem outras vanguardias, e mantenham um esforço incesante por se construir e educar a si mesmos. Farão da pedagogia política, enriquecida por Freire e por Fidel, a arte de ensinar os povos a tomar decisões na qual, qualquer que seja a decisão tomada, há riscos a assumir ou consequências a suportar, e na qual, com conhecimento, os pobres pensam e decidem. À política pedagógica é impostergável juntar esse novo tipo de pesquisa nas ciências sociais que leva bem em conta o saber dos povos e que investiga com os povos e os trabalhadores, com eles e entre eles.
63. Em todo caso, todos, como especialistas em ciências sociais, não apenas temos que impulsionar o conhecimento emocional e racional que aumetna a força das vontades emancipadoras. Temos que nos organizar para elaborar um relatório rigoroso, confiável e válido sobre os perigos de destruição do mundo, à qual nos dirigimos inevitavelmente, se seguir predominando o projeto depredador e recolonizador atual do capital corporativo, que entre os riscos que exige assumir a seus governantes vêm pressionando uma e outra vez por impor os de uma guerra de destruição mútua, que, se bem serve para aterrorizar, é também parte de um jogo ditatorial irresponsável. Demonstrar com o máximo rigor e a mais confiável e válida informação a natureza desses perigos, e colocar um caminho de transição a um mundo pós-capitalista pode parecer uma ilusão. Na realidade, constituirá um aporte à vida humana e à liberdade.
- Conferência apresentada na CLACSO “Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales”, noviembre 2012.
*Pablo Gonzalez Casanova é pesquisador social. Ex-reitor da UNAM-México.
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