SOBRE
A JUSTIÇA E A CORRELAÇÃO DE FORÇAS NO CAMPO PARANAENSE
Caroline Mari de Oliveira[1]
O
pão do povo (Brecht)
A justiça é
o pão do povo.
Às vezes
bastante, às vezes pouca.
Às vezes de
bom gosto, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão
é pouco, há fome.
Quando o pão
é ruim, há descontentamento.
Fora com a
justiça ruim!
Cozida sem
sabor, amassada sem sabor!
A justiça
sem sabor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de
ontem, que chega tarde demais!
Quando o pão
é bom e bastante
o resto da
refeição pode ser perdoado.
Não pode
haver tudo logo em abundância.
Como é
necessário o pão diário,
é necessária
a justiça diária.
Sim, mesmo
várias vezes ao dia.
De manhã, à
noite, no trabalho, no prazer.
No trabalho
que é prazer.
Nos tempos
duros e felizes.
O povo
necessita do pão diário
da justiça,
bastante e saudável.
Sendo o pão
da justiça tão importante, quem amigos, deve prepará-lo?
Quem prepara
o outro pão?
Assim
como o pão, deve o pão da justiça
ser
preparado pelo povo.
É a partir da leitura deste texto de Berthold
Brecht, provavelmente, escrito no início do século XX na Alemanha, que lanço
uma reflexão acerca da justiça e da correlação de forças entre as classes
sociais do campo paranaense.
A análise dos recentes acontecimentos
envolvendo a luta por justiça dos trabalhadores rurais sem terra no Estado do
Paraná contra a barbárie capitalista no campo expressa o processo histórico de
concentração e centralização da renda e riqueza no Brasil. A dominação
político-econômica do capital no país massacram a maioria da população
brasileira, acentuando, em especial, a pobreza no campo. Mas, para uma análise
inicial sobre a condição do campo no país, é necessário pensar em algumas questões:
A pobreza no campo existe para quem? Justiça no campo para quem? O
desenvolvimento do campo no Brasil esta trazendo muitos êxitos, mas para quem? Como
o desenvolvimento do capital tem sido apropriado no campo pela burguesia
camponesa? Como e às custas de quem tem sido produzida a riqueza no campo?
Com essas simples questões que devem ser
feitas ao analisarmos a conjuntura capitalista inserida na estrutura fundiária
brasileira para perceber que o Estado, aparelho regulador do conflito de
classes a favor da classe dominante, tem sido cada vez mais orgânico aos
interesses dominantes e tornado as políticas públicas cada vez mais vulneráveis
ou compensatórias para as populações dominadas.
Claro que essa discussão tem um rigor
teórico mais sistematizado e que deve ser melhor aprofundado em outras
análises, mas para esta pequena análise é suficiente para desvendar a reflexão
do que temos visto no noroeste do Paraná, acerca da desocupação de terras no
Acampamento Elias Gonçalves de Meura, no limite entre as cidades de Guairaçá e
Planaltina do Paraná/PR.
Nos
últimos oito anos as famílias de trabalhadores rurais que vivem em uma fazenda
improdutiva no Acampamento Elias Gonçalves de Meura, mudaram suas vidas. A
posse da terra viabilizou condições para que pudessem sair da miséria através
do trabalho e da educação. A terra possibilitou às famílias moradia, acesso
regular a água e energia elétrica, escola no campo que viabiliza educação
formal para jovens e adultos e o cuidado com a terra possibilitou a produção de
alimentação para subsistência dos trabalhadores.
Desde
agosto de 2012, 80 famílias que vivem no Acampamento estão sob ameaça de
despejo, a partir da expedição da reintegração de posse da área ocupada assinada
pelo Juiz Federal Substituto da Subseção Judiciária de Paranavaí/PR, Braulino
da Matta Oliveira Junior. Segundo o site da Organização de Direitos Humanos
Terra de Direitos, na última semana de outubro, as famílias
recorreram da decisão e o caso agora está no Tribunal Regional Federal da 4ª
Região, nas mãos do juiz federal convocado Dr. João Pedro Gebran Neto, relator
do processo.
Diante da
conjuntura capitalista que marca o campo brasileiro, não é de se estranhar a
morosidade da qual os tentáculos do capital tratam a questão da Reforma Agrária
no país. A exemplo do que ocorre em outros casos que envolvem a ocupação de
terras improdutivas, a morosidade e falhas do poder público marcam o histórico
do acampamento Elias Gonçalves de Meura, fixado na Fazenda Santa Filomena,
desde 2004. A referida fazenda de 1.797 hectares foi declarada improdutiva pelo
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, em 1998. A partir
deste parecer do INCRA, a mesma deveria ter sido desapropriada e destinada para
a reforma agrária, como prevê a Constituição Federal Brasileira de 1988.
Segundo
informações da Terra de Direitos, o caso do Acampamento Elias Gonçalves de
Meura se trata de um erro da Advocacia-Geral da União (AGU) que afastou a
possibilidade de desapropriação das terras improdutivas. Em fevereiro de 2012,
a AGU deixou de recorrer de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
desfavorável ao INCRA e impossibilitou a desapropriação da área pelo descumprimento
da função social.
Para o
integrante da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
no Paraná, José Damasceno de Oliveira, o caso da fazenda Santa Filomena reflete
o que acontece em outros municípios do Brasil, em que, apesar do decreto de
improdutividade, os latifundiários conseguem adiar e até impedir a
desapropriação para reforma agrária. Uma das formas utilizadas pelos
fazendeiros para adiar a desapropriação é burlar a avaliação de
improdutividade: “Em vários casos o juiz nomeia um perito judicial que às vezes
não entende de agricultura e que acaba desfazendo o que foi feito por uma
equipe técnica do INCRA”, lamenta Oliveira (TERRA DE DIREITOS, 2012). A verdade
que não quer calar é que a Constituição, dita “cidadã”, abre brechas para os
latifundiários burlarem a lei. Dessa forma, o direito no Brasil passa a servir
mais a elite, do que a classe que mais carece da garantia de justiça no país.
Com poucas chances do INCRA conseguir a
desapropriação clássica pelo descumprimento da função social, as famílias, com
apoio do MST e da Organização de Direitos Humanos Terra de Direitos, ajuizaram
em julho uma ação de desapropriação judicial, com base no art. 1228 §4º e
§5º do Código Civil e nas relevantes normas de direitos humanos da
Constituição, para conquistar a posse definitiva da terra. Em audiência de
tentativa de conciliação realizada em julho, o INCRA se manifestou a favor da
desapropriação judicial (art. 1228 do CC) afirmando que pagaria a indenização à
vista, em dinheiro e pelo preço de mercado, apesar disso, o proprietário se
recusou a ceder a área para os trabalhadores. Após a infrutífera audiência de
conciliação, o Juiz Federal Braulino da Matta Oliveira Junior julgou
improcedente a ação de desapropriação judicial sob o fundamento de que o INCRA
não poderia pagar pela área que seria desapropriada em favor dos acampados,
pois o INCRA só poderia pagar através da desapropriação por descumprimento da
função social (TERRA DE DIREITOS, 2012).
As
famílias acampadas na fazenda Santa Filomena recorreram da decisão do juiz
Federal Braulino da Matta Oliveira Junior que determinou a realização do
despejo e impediu a desapropriação judicial da área. Após oito anos de ocupação
com a permissão do Estado, as famílias se consolidaram na área como um pré-assentamento
de reforma agrária. Retirar de lá as famílias nesse momento, seria um
retrocesso social e econômico que certamente gerará o acirramento dos conflitos
por terra na região.
Tenho
estudado por meio de fontes bibliográficas o conflito de terras que ocorreu no
Brasil e no Estado do Paraná. Mas, o acampamento Elias Gonçalves de Meura é um
dos exemplos mais próximos que conheço que tem lutado para conquistar a reforma
agrária no Brasil, simbolizando a resistência contra-hegemônica, a partir do
acesso a terra.
A
agricultura familiar tem coberto a terra do antigo latifúndio improdutivo para
amenizar a pobreza rural que afetam a condição de vida dessas famílias
camponesas. Segundo dados fornecidos pelas famílias há alguns meses atrás,
embora não tenham recebido nenhum apoio governamental para a produção, o
acampamento tem fornecido alimentos ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)
e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por meio da cooperativa de
Comercialização e Reforma Agrária Avante Ltda (Coana), localizada em Querência
do Norte/PR. Mais de 30 famílias estão envolvidas na produção ligada à
cooperativa, em um total de 120 pessoas do acampamento.
Além
dessas conquistas, o acesso a educação no Acampamento Elias Gonçalves de Meura
não pode deixar de ser considerado neste texto. A ocupação da terra acompanhou
a necessidade de ocupar a escola no território camponês, como um dos
instrumentos de transformação da realidade. No início da ocupação, a partir do
trabalho dos próprios acampados, a escola foi erguida com lona preta, sobre
chão batido no local em que os antigos proprietários colocavam os animais.
Desde o
início, a escola atende os acampados e também integrantes do Assentamento
Milton Santos, localizado na região de Planaltina do Paraná/PR. O acesso à
educação é uma das grandes conquistas dos camponeses a partir da ocupação da
terra e da organização da vida de forma coletiva. Batizada de Carlos
Marighella, a escola itinerante tem 11 professores: seis são do acampamento e
lecionam na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, outros
cinco professores vêm de outras localidades para ministrar as aulas do 6º ao 9º
ano do Ensino Fundamental. Além das crianças, adolescentes e jovens que cursam os
anos regulares. A escola também possibilita acesso à educação para jovens e adultos
e ajuda a suprir a baixa escolaridade da comunidade por meio das práticas
pedagógicas e coletivas da Educação do e no Campo.
Caldart
(2005, p. 64) explicou que a Educação do e no Campo faz parte de um projeto
político e social maior, em que: “antes ou (junto) de uma concepção de
educação, ela é uma concepção de campo” e ainda explica que “não há escolas do
campo num campo sem perspectivas, com o povo sem horizontes e buscando sair
dele”. Por isso, baseados no direito subjeito a educação garantido na Constituição
Federal brasileira de 1988, explicamos a necessidade histórica da construção e
luta por uma Educação do e no Campo que busque a valorização da experiência,
identidade, da cultura, das relações de trabalho dos povos do campo.
Junto à
luta por Educação do e no Campo, observamos a luta por terras para que a vida e
a cultura camponesa seja conquistada por essas famílias com dignidade. A
desocupação da fazenda Santa Filomena expressa um retrocesso social e
educacional muito grande. Fico pensando como estão as cabecinhas das crianças e
adolescentes, que conheci nas visitas que fiz ao acampamento e à escola,
sabendo que essa conquista está ameaçada?
De acordo
com o que foi exposto aqui e com a luta por Educação do e no Campo, a
desapropriação da área do acampamento é medida de justiça. Expulsar as famílias
do campo é deixá-los sem perspectivas, é retirar delas a maior possibilidade
que já tiveram para viver com dignidade. Se despejadas da terra, essas famílias
não terão para onde ir, não haverá política pública que substitua a perda da
condição de vida que alcançaram. Além disso, haverá um retrocesso social na
condição de vida dessas famílias e o despejo forçado aumentará a tensão e o
conflito no campo no Estado do Paraná.
Referências:
CALDART,
R. S. Elementos para a construção do projeto político pedagógico da educação do Campo. In: PARANÁ. Secretaria de
Estado da Educação. Cadernos Temáticos: educação do campo. Curitiba:
SEED/PR, 2005.
TERRA
DE DIREITOS. Justiça Federal decide
o futuro de 80 famílias sem terra acampadas há oito anos no Paraná. Disponível em: http://terradedireitos.org.br/biblioteca/justica-federal-decide-o-futuro-de-80-familias-sem-terra-acampadas-ha-oito-anos-no-parana/.
Acesso em: 27 nov. 2012.
Neste
texto, apresentei alguns dados sobre a Escola Itinerante Carlos Marighella,
localizada no Acampamento Elias Gonçalves de Meura no noroeste do Estado do
Paraná. Para mais informações sobre esta escola, disponibilizo um texto escrito
por mim e algumas pesquisadoras em Políticas Educacionais e Educação do Campo
sobre “ESCOLA ITINERANTE: UMA ANÁLISE PARA ALÉM DA SALA DE AULA”. Este texto objetiva
a reflexão das práticas da Educação do e no Campo na Escola Itinerante Carlos
Marighella e da importância que a mesma representa para o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra no Paraná. O texto foi apresentado na IX Anped
Sul - Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul no 2º semestre de 2012 em
Caxias do Sul/RS.
Para
acessar, clique aqui:
[1] Graduada em Pedagogia pela
Universidade Estadual de Maringá e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Estadual de Maringá, linha de políticas e gestão da
educação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário