ALCA E EDUCAÇÃO: direitos intelectuais?
Profª Drª Irizelda Martins de Souza e Silva-UEM
Profª Kiyomi Hirose-UEM
Profª Drª Maria Aparecida Cecílio-UEM
No movimento político do governo norte-americano nos anos 2002 e 2003, observamos que as
estratégias para anexação ao projeto da Área de Livre Comércio (ALCA), propostas como
integração comercial dos países das Américas, com exceção de Cuba, amenizam as ações
comerciais agressivas ao Chile e ao México. Será que essa atuação ocorreu em função da
aproximação desses países ao Mercosul1? Será a proposta de Mercosul, uma fonte de negociação
com outros mercados que exige cautela aos negociadores da ALCA? Levantamos estes
questionamentos no intuito de provocar estudos na busca de equacionamento do jogo de poder
que regula os mercados e que define metas para os setores de serviços, dentre os quais,
destacamos o educacional. Abordamos como ponto específico de discussão, o item de pauta do
projeto ALCA "propriedade de direitos intelectuais", ocupando-nos na busca de compreensão da
dimensão de envolvimento do setor de educação nesse projeto, sob a perspectiva latinoamericana
de aproximação das possibilidades e dificuldades de negociação entre Mercosul e
ALCA.
Nesse intuito, constatamos que em dezembro de 2003, a presidência do projeto da ALCA
agenciou todos os setores de produção: primário, secundário e terciário, durante as rodadas de
negociações via Organização Mundial do Comércio (OMC). Olhamos para esses acontecimentos
entendendo que a educação abarca todos esses setores, pela institucionalização do ensino e pela
possibilidade de formação de mão-de-obra, a começar pela alfabetização e pela formação
profissionalizante. A presença de negociadores para o livre mercado, provenientes dos diferentes
setores de produção, discutindo os setores de serviços dos países envolvidos, de imediato nos faz
refletir: quais interesses teriam os referidos setores produtivos no serviço educacional dos países
envolvidos? Nos encontros de cúpula da ALCA, a pauta dos debates observada na estrutura de
prioridades, é indicativa de entrelaçamento entre mercado, saúde e educação. É nesse panorama
que focalizamos nosso objeto de estudo identificado nos encontros de cúpula como "propriedade
de direitos intelectuais", propriedade esta que, na Constituição Federal Brasileira de 1988, é
2
princípio de soberania da nação, e também, de responsabilidade da comunidade científica
brasileira. Mas por que lembrar esta informação específica do Brasil?
O mapa geopolítico dos agrupamentos mundiais é detentor de dados demonstrativos de
estratégias de comando dos mercados comerciais, importantes para a leitura do conjunto, no qual,
está inserido o setor educacional e as vias de trânsito que o acessam nesse processo. Nem sempre
são vias diretas, no entanto, entrecruzam-se e indicam a proximidade e o distanciamento que os
setores de produção almejam para o desenvolvimento econômico dos mercados. As ações
setoriais de cada país fornecem dados exemplares para o encaminhamento dessa compreensão.
No Brasil, observamos a base constitucionalista que, em última instância, orienta as ações dentro
do país em relação a outros países: a soberania.
Tomando a soberania como norte das ações que regulam a maioria dos países, os Estados Unidos
da América (EUA) lança mão da cartada de investir na pauta da agricultura e os direitos
intelectuais, no enfrentamento de poderes durante as negociações da ALCA. A agricultura por
representar a manutenção alimentar, como referencial mundial, e por alavancar o controle de
subsídios desenvolvidos pela Comunidade Européia (CE) a seus produtores, no ano de 2002
frente à ação protecionista dos norte-americanos nesse setor.
O enfrentamento europeu ao poderio econômico norte-americano desequilibrou o comando desse
governo junto a OMC. Os europeus que, até então, resistiam à derrubada do protecionismo
agrícola contaram com a parceria do Japão, que adota posições cada vez mais duras em relação
aos cortes de tarifas propostas, para exportação de produtos, bem como a redução do suporte
financeiro doméstico aos produtores agrícolas, sempre que distorçam o comércio.
Essas posições forçaram a cúpula do projeto da ALCA a reordenar a posição política deliberadora
que imperou até então, acentuando a antecipação dos encontros para acordos de anexação, de
modo a acalentar os Tigres Asiáticos2 diante do confronto com a CE. A acirrada posição
exponencial assumida pela cúpula dos EUA frente à Organização das Nações Unidas (ONU) e
OMC teve, no ataque ao Iraque (2003), a máscara de articulador transformada com a face de
3
ditadura, conquistando desafetos por todo o mundo, para além da OMC, da CE, também,
manifesta-se na crise com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Hobsbawm, historiador britânico, em entrevista concedida ao jornalista Machado3, na cidade do
Rio Janeiro, não olhava com otimismo os próximos vinte ou trinta anos, afirmando que os
Estados modernos estão definitivamente perdendo, nas últimas três décadas, o controle da
violência em seus territórios e que é um processo que está apenas começando; que a crise que
hoje presenciamos está diretamente ligada à Guerra do Iraque, muito impopular, também na
Inglaterra, ultrapassando os limites do Partido dos Trabalhadores, quando se tentou reformar o
sistema britânico em direção ao livre mercado norte-americano, algo pouco coerente com os
princípios tradicionais do partido. Outra questão abordada nesta entrevista, diz respeito à
propriedade intelectual, se referindo ao uso da tecnologia biológica e não nuclear.
No âmbito do controle da propriedade intelectual, ou melhor, da produção à comercialização dos
resultados obtidos com o conhecimento, entendemos que a produção de conhecimentos, cuja
aplicação nem sempre se revela de imediato, deve ser também o espaço da socialização do saber
na medida em que divulga e socializa a propriedade do saber para o encaminhamento de
problemas atuais e prementes dos diversos grupos sociais4.
Na posição dos Estados Unidos da América (USA) frente às propostas da ALCA, a socialização
do saber contido no direito à propriedade de patentes, demonstra seu potencial monopolizador até
mesmo no setor da saúde pública. As regras de patentes da OMC são reforçadas pelas estratégias
dos USA frente à Organização das Nações Unidas (ONU) nas alianças protecionistas e na ação de
monopólio, como na aliança USA e Índia para não liberação de medicamentos genéricos, tendo
como conseqüência um genocídio, que os meios de comunicação parecem banalizar,
naturalizando os fatos.
Saramago (2004), em sua nova obra: Ensaio sobre a Lucidez, recém-lançado no Brasil, dentre
outras questões, reafirma que
não há nenhum caminho tranqüilizador a nossa espera.
[...]
4
O poder econômico governa o mundo, e governa-o para que sirvamos
aos seus interesses e aumentamos os seus lucros.
[...]
O poder econômico não é democrático. Os governos tornaram-se
comissários políticos do poder econômico.
Dessa realidade, remetemo-nos ao ocorrido, no caso da comercialização de medicamentos,
quando o Brasil, por meio do Ministério da Saúde, desafiou a quebra da patente pelo direito à
produção de genéricos para o tratamento de portadores do vírus HIV, parecendo ter conquistando
o direito de defesa à vida aos portadores, porém não lhes garantindo o poder de compra.. No final
de 2001, em Doha, Qatar, Continente Africano, o Brasil conseguiu emplacar a tese de que o
respeito às patentes – leia-se propriedade intelectual - não podia servir de empecilho para
produção de remédios. A tese, como defesa de um direito humanitário, foi exibida como "virtude
pública", dissimulando os vícios econômicos privados.
A constante necessidade de controle das bases de organização social do mundo pelos
doutrinadores norte-americanos traz nas suas ações a medida das reações que estão eclodindo no
cenário mundial com a aceleração da agenda para as negociações da ALCA.
No campo da educação, a calmaria brasileira diante do compasso das discussões científicas
envolvendo os direitos intelectuais é, no mínimo, inquietante. Os gritos políticos dos movimentos
sociais parecem não soar para os que se encontram embrenhados no sistema educacional
brasileiro, no tocante às determinações científicas que essa questão implica. Enquanto jornadas
internacionais de protestos são profundamente discutidas e organizadas pelas redes dos
movimentos sociais, há aparente inércia da população de educadores e de pesquisadores das
instituições de ensino superior, enquanto sociedade civil organizada, frente às preocupações que
trazem as negociações da ALCA, sobre a produção do conhecimento científico.
Porém, lembramos que em 1997, reunidos em Itaici/SP, cerca de trezentos delegados ligados às
mais significativas expressões de lutas atuais do povo brasileiro, do campo ou da cidade, filiados
ou não a partidos políticos e movimentos sociais, debateram a situação nacional, trazendo para o
centro da discussão a América Latina e a criação da ALCA. A preocupação recaia sobre a
5
inclusão, "[...] não só do comércio de bens e os fluxos de capital, mas também os serviços
financeiros e a propriedade intelectual" (BENJAMIN, 1998, p.136).
A abrangência da discussão e das decisões sobre direitos intelectuais deve, na nossa compreensão
de pesquisadoras, incomodar os agentes sociais responsáveis na produção de conhecimento e para
o uso que se fará do direito ao conhecimento pelos governantes. Deve compor eixos temáticos de
fóruns de políticas públicas nacionais e internacionais, com compromissos pontuais de uma
agenda que priorize mobilização social para o debate de produções científicas, processadas no
setor educacional público, para o projeto ALCA. É o setor educacional, competente para
orientação do serviço essencial na discussão da propriedade intelectual. Embora a sigla ALCA
trate apenas do fantasioso "livre comércio", o alcance de tal projeto será bem maior. Na tradução
de Mercadante (2002), trata-se de um projeto estratégico dos EUA, de consolidação de sua
dominação, no nosso entendimento, via propriedade intelectual.
A preocupação nos remete nos momentos de busca às fontes, como o site5 oficial do projeto
ALCA. Constatamos nas divulgações desse site, em 2003, pauta de direito de propriedade
intelectual considerado como "informações sobre as autoridades responsáveis das distintas áreas
da propriedade intelectual; direitos de autor, propriedade industrial, variedades vegetais,
autoridades aduaneiras-alfandegárias e autoridades a cargo da política comercial nesta área".
Na publicação do Jornal ALCA e os Trabalhadores, Borges (2002) alerta sobre os efeitos da
ALCA enfatizando que "procuram concretizar o velho sonho liberal de privatizar todas as
dimensões da vida humana", reforçamos aqui a dimensão intelectual. Não participar desse debate
não produz o efeito de isenção de responsabilidade sobre a utilização dos direitos intelectuais,
mas pode significar imprudência política da nação que terá em seus governantes o único canal de
manifestação de opiniões e voto, portanto, poder de deliberação. Fiar-se nessa democracia
representativa caracteriza, no mínimo, um ato (des)educador para a população brasileira, no
momento histórico que vive, quando a participação popular é evocada como "prática social de
responsabilidade para a conquista da cidadania" no atual governo federal.
6
Ao acompanhar pelos meios de comunicação e por documentos divulgados por ministérios
públicos no Brasil e pelo governo norte-americano, nas negociações realizadas por nossos
representantes nos encontros multilaterais, observamos que há mobilização e iniciativas nos
setores produtivos6 que concretizam a importância do desenvolvimento de debates sociais que
orientam as decisões de nossos negociadores nos diferentes setores de produção.
O setor industrial e agrícola, os segmentos da cultura em alguns Estados da Federação Brasileira
e os movimentos sociais interferem nas grandes decisões, na medida em que seus debates
setoriais orientam as políticas de ação do Estado Maior pelos questionamentos realizados. No
setor da educação, se há alguma expressão que manifeste o interesse para com a importância do
debate político sistêmico e científico no tocante às propostas de mundialização da economia, não
se tem encontrado ressonância nacional e, conseqüentemente, não orienta sobre o que há de
específico na garantia de controle nacional sobre os direitos intelectuais, não se implementando
orientação política.
Chauí (1999), ao falar sobre a pesquisa e a função social das universidades, alertava para as
conseqüências dos caminhos que as instituições trilham.
Se por pesquisa entendemos a investigação de algo que nos lança na
interrogação, que nos pede reflexão crítica, enfrentamento com o
instituído, descoberta, invenção e criação. Se por pesquisa entendemos o
trabalho do pensamento e da linguagem para pensar e dizer o que não foi
ainda pensado nem dito. Se por pesquisa entendemos uma visão
compreensiva de totalidades e sínteses abertas que suscitam a
interrogação e busca. Se por pesquisa entendemos uma ação civilizatória
contra a barbárie social e política, então é evidente que não há pesquisa
na Universidade Operacional.
Chauí fundamenta a abordagem reflexiva que procuramos dar a este texto, traduzindo a função
que as universidades assumem diante das agendas propostas na mundialilização da economia.
Face à problemática, indagamos: o que fazer para atenuar tais preocupações?
A resposta não é cabal, mas estamos ainda, como "velhos marinheiros" mapeando o caminho.
Algumas preocupações têm sido objeto do nosso grupo de pesquisa que nos impele à busca de
7
parceiros para discussões e investigações. Nessa busca pudemos constatar que, no campo
jurídico, existem iniciativas de debate para a orientação das políticas nacionais de ação legal
perante o direito internacional. São iniciativas que se refletem no aumento de interessados na
formação de grupos de estudos de pós-graduação para a realização de pesquisas sobre direito
ambiental internacional. Merece nossa atenção essa prática, no sentido de realização institucional
de debates afins que mantém as organizações governamentais aptas a defenderem um
posicionamento coerente com o princípio de soberania nacional, no que se refere à propriedade
intelectual. Entendemos que olhar para a história recente não é desrespeitar o conceito de que o
objeto da história deve ser remoto.
1 Mercado Comum do Cone Sul.
2 Índia, África do Sul e China (1989); Malásia, Tailândia e Indonésia (1999).
3 Cassiano Elek Machado, Folha de São Paulo, 31/07/2003.
4 Ver Fávero (1995) In: Produção e apropriação do conhecimento na Universidade.
5 www.citzen.org; www.ftaa.alca.org/alca; www.inpi.gov.br/; acesso em 19/02/2003.
6 O fato do Brasil, no enfrentamento jurídico ao subsídio norte-americano aos produtores de algodão, noticiados pela
imprensa mundial falada e escrita, no mês de abril de 2004.
REFERÊNCIAS
BENJAMÍN, César et al. A opção brasileira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998.
BORGES, Altamiro. In: Jornal A ALCA E OS TRABALHADORES, 2002.
CHAUÍ, Marilena. A Universidade operacional. In: FOLHA DE SÃO PAUL: Caderno Mais,
1999.
FÁVERO, Maria de Lourdes Albuquerque. Produção e apropriação do conhecimento. In:
MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa (Org.). Conhecimento educacional e formação do
professor. Campinas: Papirus, 1995.
MACHADO, Cassiano Elek. In: FOLHA DE SÃO PAULO, 31/07/2003.
MERCADANTE, Aloísio. In: Jornal A ALCA E OS TRABALHADORES, 2002.
www.citzen.org; www.ftaa.alca.org/alca; www.inpi.gov.br/; acesso em 19/02/2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário